Há ideias bem exploradas e momentos bem interessantes, nesta conversa entre a redação da revista com João San Payo e João Pedro Almendra...
PESTE & SIDA
BANHO DE REALIDADE
«Cai No Real», o novo disco do quarteto... testemunha o estado de graça de uma banda cuja energia não deixa adivinhar os 21 anos de carreira que já tem nas costas.
San Payo: O «Cai No Real» acabou por ser feito, em termos de composição, por uma formação muito consolidada e acabou por dar frutos que – para nós – foram super-positivos por isso mesmo; as músicas acabaram por ser feitas pelos quatro, muitas delas foram tocadas em palco várias vezes.
Um pouco como o que aconteceu com o «Veneno» e isso é giro – já falei disso com o João Pedro – muita gente tem sempre aquela ideia de que os primeiros discos das bandas é que são os melhores.
Tenho um pouco a ideia de que isso acontece porque geralmente as bandas, quando estão no seu início, quando entram em estúdio para gravar o primeiro álbum acabam por ir gravar as músicas que já tocaram inúmeras vezes em palco.
Almendra: ...enquanto que eu, com o «Veneno», passados 15 dias, já encontrava erros e pequenos pormenores – e a própria banda se apercebia que podia desenvolver ainda mais os temas, com o «Cai No Real» constatamos que, para além de três ou quatro pormenores que no disco até nem ficariam bem – por exemplo uma introdução na «Bebe Vinho» que ao vivo fica melhor – quase que encontrámos a fórmula exacta.
E isso é algo que até a nós nos transcende um pouco quando nos apercebemos que temos quatro entidades que funcionam no seu próprio universo mas que se completam...
Se influenciámos pessoas, esperamos que tenha sido sempre no sentido positivo – e ainda bem; é sinal que andámos a fazer alguma coisa.
Valorizamos imensas bandas que andam aí: Simbiose, Revolta, Gazua... conheço “n” bandas que andam aí agora a fazer coisas interessantes e que olham para nós de certo modo como, por exemplo, nós olhávamos para os Xutos numa determinada altura e outras bandas têm também as suas influências.
A Loud! concedeu ao Billy News, a publicação desta entrevista na íntegra e podem ler tudo, clicando em "Comments" já abaixo...
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ResponderEliminarFica já aqui o meu agradecimento especial à revista Loud! por poder publicar em exclusivo esta entrevista na íntegra, que (obviamente) por motivos editoriais, não pôde ser publicada.
Não custa (MESMO) nada facilitar os outros, certo?
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ResponderEliminarPESTE & SIDA
BANHO DE REALIDADE
Quando, em 2004, João San Payo anunciou o regresso dos PESTE & SIDA aos álbuns de originais e aos palcos pouca gente poderia imaginar que, três anos depois, o grupo respirasse um dos melhores momentos - artístico e de popularidade – da sua carreira.
«Cai No Real», o novo disco do quarteto agora completo com a inclusão do vocalista original João Pedro Almendra, testemunha o estado de graça de uma banda cuja energia não deixa adivinhar os 21 anos de carreira que já tem nas costas.
Recebemos João San Payo e João Pedro Almendra no quartel-general da Loud! Para explicarem uma revolução que é bem real.
Qual é o balanço que fazes do regresso da banda, depois de dois discos e inúmeros concertos?
San Payo: É positivo, porque conseguimos com o primeiro álbum pôr o comboio em marcha, depois de oito anos parado. As coisas começaram com um orçamento pequeno – daí o «Tóxico» ter tido as limitações que teve – mas a verdade é que a partir do momento em que o comboio recomeçou a rolar tem crescido cada vez mais todo o interesse à volta dos Peste & Sida. Isso tem-nos motivado mais para conseguirmos fazer as coisas com mais vontade e com melhores resultados. Nota-se também pelas pessoas, que aos poucos têm vindo a mostrar interesse em trabalhar connosco, como o Nuno Rafael a produzir e a malta que trabalhou graficamente no «Veneno» e no «Portem-se Bem», que foram sem dúvida os dois álbuns mais característicos de Peste & Sida... foram para mim os mais importantes dos seis que os Peste & Sida lançaram. Tirando o «Cai No Real», que tem a importância que tem por ser o disco actual, o «Veneno» e o «Portem-se Bem» foram sem dúvida os mais marcantes. Este álbum tem tudo a ver com esses dois porque conseguimos pôr a máquina em movimento. O balanço tem sido positivo e isso tem-nos motivado, tem-nos criado condições para desenvolvermos o trabalho como gostávamos que fosse desenvolvido.
Achas que os concertos que tocaram ao vivo nos últimos anos contribuiriam para a sonoridade do «Cai No Real»?
San Payo: Ajudaram, porque nestes 21 anos de Peste & Sida a banda nunca teve uma formação constante: existiram sempre entradas e saídas de elementos. No entanto, nunca se perdeu a coerência, porque se mantiveram sempre as directrizes que foram marcadas à partida. Isso voltou a conseguir-se agora, mas o que se conseguiu sobretudo com o «Cai No Real» foi criar músicas para um disco com uma formação consolidada. Isso enquadra-se também na questão que colocaste há pouco: o «Tóxico» reactivou os Peste & Sida e essa formação – se bem que o Orlando saiu – conseguiu trabalhar com o João Pedro, um músico que vinha como convidado para os espectáculos e acabou por integrar a formação porque viu que existiam condições para apostar forte e para se fazer um trabalho com cabeça, tronco e membros. O «Cai No Real» acabou por ser feito, em termos de composição, por uma formação muito consolidada e acabou por dar frutos que – para nós – foram super-positivos por isso mesmo; as músicas acabaram por ser feitas pelos quatro, muitas delas foram tocadas em palco várias vezes. Um pouco como o que aconteceu com o «Veneno» e isso é giro – já falei disso com o João Pedro – muita gente tem sempre aquela ideia de que os primeiros discos das bandas é que são os melhores. Tenho um pouco a ideia de que isso acontece porque geralmente as bandas, quando estão no seu início, quando entram em estúdio para gravar o primeiro álbum acabam por ir gravar as músicas que já tocaram inúmeras vezes em palco.
...Sabem como funcionam...
San Payo: Não só sabem como funcionam, como já lhes deram todas as voltas possíveis e imaginárias. Ou seja, não só esses temas já cresceram com a banda como a própria banda cresceu com essas músicas... acaba por se criar uma grande empatia com todo o trabalho que se está a desenvolver. Vai-se apurando todo esse trabalho criativo quando se toca muitas vezes em palco, quando se vê qual é a reacção das pessoas, quando se vai descobrindo espontaneamente mais elementos – sobretudo a nível vocal. Quando se está em palco com quatro micros abertos, há sempre alguém que se lembra de fazer um coro espontaneamente – os que são bons ficam, os que não resultam acabam por cair no esquecimento. Este processo acabou por enriquecer as músicas, que já tinham sido tocadas em palco quando as levámos para o estúdio. Embora se note que temos 21 anos de profissionalismo em cima deste álbum, nota-se também muita espontaneidade, como se havia no «Veneno» - acho que existem muitos pontos comuns entre o «Veneno» e este disco.
Parafraseando um jornalista nacional conhecido, há menos “pó de talco” e mais “pó de palco”...
San Payo: [risos] Existe um bom equilíbrio entre as duas coisas, mas felizmente conseguiu-se incluir muitos elementos espontâneos e, sobretudo, a partir do momento em que o João Pedro entra... o João Pedro fez parte desses dois álbuns, foi desde sempre a voz mais carismática de Peste & Sida. No período entre 1990 a 1994 ele não teve nos Peste & Sida e a banda continuou – no entanto continuou a ser, pelo carisma que tinha, a voz emblemática dos Peste & Sida. A agora cá está ele outra vez no «Cai No Real» - pá, isso é um ás.
Almendra: As músicas crescem e vivem connosco numa certa forma, numa certa identidade. Umas fazem-se na estrada, com a experiência e empatia que se cria entre nós, e outras acabaram por resultar em estúdio. Uma que, por exemplo, resultou em estúdio muito bem foi a «Cidade Veneno», na qual o Nuno Rafael teve o seu cunho. As coisas não têm assim um padrão fixo: é um processo criativo.
Foste uma espécie de clic que acabou por completar a banda para este disco. Isso representa alguma espécie de pressão para ti? Sentes o peso de ser “o elemento que faltava” em Peste & Sida, sempre que tens que subir a um palco, sempre que tens que gravar uma linha de voz?
Almendra: Isso é um bocado a tua opinião. Obviamente foi um clic, mas para mim. Primeiro foi uma questão de responsabilidade e um voto de confiança que me foi dado. Depois também no fundo é uma coisa que gosto de fazer e era uma coisa em que acreditava muito; era um objectivo que tinha traçado para mim e tentado isso com uma banda anterior. As coisas não correram muito bem. Mas estava decidido; achei que o projecto, quando fui convidado, estava extremamente interessante, achei que tinha todo aquele valor e... no fundo o que o João disse até agora, que estava lá a carga emocional toda. As coisa funcionam como uma equipa: muitas vezes as pessoas têm que se encontrar para perceberem que é mesmo aquilo que querem e o que aconteceu foi precisamente isso: a dada altura, já na final da digressão do «Tóxico», o João ligou-me, começámos a ensaiar e percebemos que a química estava lá. Foi um processo que tivemos que atravessar para perceber se realmente era isso que queríamos. Sei lá... e depois se calhar é uma feliz coincidência constatarmos que este álbum é bom e se parece com o «Veneno» e com o «Portem-se Bem», porque era precisamente essa química que existia... isto também com o Marte Ciro e com o João Alves, que são outros dois elementos que vêm dar uma nova luz a essa química. No fundo isto acaba por ser quase transcendental... temos que entrar dentro de Peste & Sida e respeitar não uma linha que nos é imposta, mas temos a responsabilidade de sermos iguais a nós próprios... no fundo sermos nós e de nos encontrarmos enquanto pessoas.
Como é que encontram o equilíbrio entre a vossa evolução musical enquanto músicos e sonoridade característica de Peste & Sida, com os elementos musicais que a caracterizam?
Almendra: Este álbum tem já algumas respostas a essa questão.
San Payo: Peste & Sida tem 21 anos de carreira – e vão ser mais, pelo que está a acontecer – porque tem-se desenvolvido dentro de determinadas premissas. Podíamos ter feito alguns desvios e ter tido um sucesso imediato, que mais tarde – mais tarde não, mais cedo – nos faria ser enfiados numa gaveta e votados ao esquecimento. Agora, a partir do momento em que mantemos a linha estética coerente com aquilo que é Peste & Sida em termos de criação musical e de mensagem, conseguimos manter essa entidade que as pessoas reconhecem que é Peste & Sida e que é inconfundível, não se confunde com nenhuma outra banda. Acho que são esses que acabam por ser os parâmetros que os quatro, individualmente, temos já definidos nas nossas cabeças e que estão balizados, de modo a sabermos o que temos que fazer para não defraudar as pessoas que gostam de Peste & Sida e que valorizam aquilo que fazemos enquanto banda. Digo isto porque tanto o João Pedro como o João Alves e o Marte Ciro fazem outras coisas, têm outros projectos – eu também terei outros projectos. No entanto, quando nos encontramos e trabalhamos os quatro nesta equipa que é Peste & Sida a questão acaba por nem se levantar, porque é tão natural que não há concessões. As coisas surgem com muita naturalidade e espontaneidade. Sabemos quando nos estamos a desviar muito daquilo que poderia ser Peste & Sida e nós próprios acabamos por, através de conversas dentro do grupo, descobrir que existem maneiras para manter a linha que definimos para não defraudar as pessoas que gostam de Peste & Sida.
Almendra: Quando há pouco mencionámos o «Veneno», embora o João tenha muita razão quando diz que quando uma banda grava o primeiro disco acaba por andar muito tempo a tocar os mesmos temas e nós preocupámo-nos em fazer isso com o «Cai No Real». Mas enquanto que eu, com o «Veneno», passados 15 dias, já encontrava erros e pequenos pormenores – e a própria banda se apercebia que podia desenvolver ainda mais os temas, com o «Cai No Real» constatamos que, para além de três ou quatro pormenores que no disco até nem ficariam bem – por exemplo uma introdução na «Bebe Vinho» que ao vivo fica melhor – quase que encontrámos a fórmula exacta. E isso é algo que até a nós nos transcende um pouco quando nos apercebemos que temos quatro entidades que funcionam no seu próprio universo mas que se completam muito bem. Isto é giro dizer e é fácil estar aqui a falar barato, mas o importante é que queremos os quatro fazer o mesmo e vimos de quatro origens um pouco diferentes – o que é acontece é que nos completamos. O João San Payo tem uma grande formação musical, bem como o João Alves e o Marte Ciro tem uma grande experiência como baterista; eu enquanto músico não tenho uma grande experiência – sou um performer e daí a tal responsabilidade – mas tenho a sensação de que juntamos espontaneidade com os factores maturidade e conhecimento, e ninguém se sente melhor do que ninguém só porque um sabe mais do que outro; simplesmente deitamos as cartas todas na mesa e depois, claro, é um processo de deitar fora o que não interessa.
San Payo: Acho que isso acaba por ser um trunfo que não existia no «Veneno»; este disco ganhou muito pela espontaneidade. Aqui, para além da espontaneidade, existe – como o João Pedro disse – uma maturidade que não existia na altura que nos permite mais rapidamente decidir e estabelecer ligações entre os elementos que cada um dá de si. Isso é muito porreiro, porque acabamos por fazê-lo com naturalidade, de uma forma espontânea e muito rapidamente.
Almendra: O João estava a dizer “Ah, isto corre tudo muito bem” e não sei quê. Mas por vezes também temos ensaios em que não tocamos. Estamos ali uma, duas, três horas às vezes a discutir. Discutir quer dizer... não andamos à tareia. Mas falamos, discutimos porque é que uma coisa não resulta, o que é que vamos fazer...
San Payo: Nota que é mesmo discutir, não é desatinar. Não perdemos tempo a desatinar. Quando falo em continuidade é disso que falo. Quando discutimos debatemos e não desatinamos.
Almendra: ...E quando começamos a desatinar, pá, cada um vai para seu lado e falamos mais tarde. As relações dentro da banda é tipo de namoradas, mais ou menos – só não temos que viver uns com os outros 24 horas sobre 24. É uma relação de respeito mutuo em que o outro tem sempre algo para nos dar – é melhor aceitar, porque acordamos, vivemos e deitamo-nos sempre connosco: as ideias dos outros têm que ser boas necessariamente, porque as nossas já estão gastas. Falo por mim; as minhas ideias são sempre as mesmas, portanto quero ouvir as dos outros. Esse tipo de abordagem faz com que às vezes estejamos horas a debater as músicas, mas é mesmo assim.
Estão então totalmente satisfeitos com o disco e não mudavam nada nele agora...
San Payo: É a eterna procura da perfeição. Geralmente saímos do estúdio e começamos logo a descobrir aquilo que não fizemos e que podíamos ter feito. Com o «Cai No Real», até agora, temos descoberto mais aquilo que está perfeito e que não tínhamos notado na altura do que algumas imperfeições ou alguns acrescentos que poderíamos ter feito para que o trabalho ficasse melhor. Até agora estamos ainda a descobrir o álbum e, realmente, superou as nossas expectativas.
Almendra: Todos os artistas, todos os criadores, todos os músicos, todos os pintores – toda a gente que se mexe dentro do mundo criativo... e mesmo o próprio carpinteiro, alguém que faça alguma coisa, é sempre crítico em relação ao seu trabalho. As coisas têm que estar sempre perfeitas. Por acaso neste trabalho as coisas correram bem, mas só para fechar este assunto, queria dizer que... não sei o nome do pintor, foi no final do século XIX, e teve um dos seus quadros exposto no Louvre. E ele volta e meia ia lá e dava uma pincelada no quadro... até que um dia foi apanhado pelo director do museu, que o proibiu de ir lá. Porque ele achava que o quadro não estava completo e que não estava ainda perfeito. [risos] Aquilo tinha que ter sempre mais uma pincelada. Isto é um episódio, que eu acho que é verídico, que representa um bocado aquilo que os músicos buscam... e quando procuram também contacto com outros músicos e com outros projectos.
San Payo: É uma coisa que na música não se pode fazer: está registado, está registado – é assim que fica para todo o sempre. Agora, é engraçado ver esta química que existe entre nós, Peste & Sida, e por sermos uma equipa dinâmica acabamos por pegar nestes temas - tal como nos temas que estão para trás e que fazem parte do reportório de Peste & Sida - e estamos sempre a acrescentar e a modificar coisas ao nosso gosto, mantendo sempre a linha daquilo que os Peste & Sida poderiam fazer e como poderão fazer melhor. Estamos ansiosos por começar a trabalhar já no próximo álbum.
Em termos logísticos, com todos os concertos que deram ao longo do ano, foi fácil gravar o disco?
Almendra: Este disco representou muito “sangue, suor e lágrimas”, porque aconteceu no meio de uma digressão – passámos o ano de 2006 a tocar, a irmos para os Açores, a chegar no avião a entrar em estúdio, a fazer vozes em estúdio, a ensaiar, a dar concertos... o João partiu a perna. Foi um ano horrível.
San Payo: Existiram condicionantes que complicaram um pouco a coisa, principalmente por causa do Rafael. Logo à partida é uma edição de autor, com todas as dificuldades que isso acarreta, porque temos que ser nós a tirar do nosso bolso – pá, já sabíamos que ia ser assim. Depois, tivemos a ideia – que se revelou feliz – de convidar o Nuno Rafael para produzir. Foi muito porreiro, sobretudo porque o Nuno Rafael, porque já fez parte dos Peste & Sida, conhece o nosso universo e acabou por alinhar. No entanto, estivemos sempre condicionados a todos os compromissos que ele já tinha assumido anteriormente. Tínhamos que trabalhar quando ele podia, quando nós podíamos, quando o estúdio podia... em termos de horários foi complicado, mas conseguiu-se conciliar. No entanto, isto cria algumas interrupções inesperadas. O que é engraçado é que mesmo essas interrupções que não estavam previstas acabaram por ser utilizadas, mais uma vez, para tocar os temas ao vivo, descobri-los mais uma vez antes de levá-los para estúdio de novo. Muitas vezes estávamos a tocar faixas que iriamos gravar 15 dias depois no estúdio e tínhamos oportunidade – porque eramos obrigados interromper o trabalho de estúdio e tocá-las ao vivo – de redescobri-las e reinventá-las. Claro que isto depois acaba por trazer novos elementos e, lá está... falando agora em termos de produção, quando levámos estas músicas para palco e vimos que resultavam, pela experiência que temos, sabíamos que em estúdio toda esta matéria prima tinha outras potencialidades que, à partida, não iriamos sequer apurar nem descobrir se não tivéssemos o Nuno Rafael, com uma visão externa muito mais objectiva. Porque a partir do momento em que estamos a tocar em palco e sabemos que as músicas resultam nesse ambiente, para nós estão porreiras – e nem sequer estamos a descobrir que podem ter muito mais potencialidades que nem imaginamos, quando são gravadas em estúdio, para ficarem registadas para todo o sempre. E foi nesse aspecto que o Nuno Rafael veio contribuir imenso – porque conseguiu ter uma visão externa muito mais objectiva, conseguiu pegar num diamante em bruto e lapidá-lo. E existiram temas que realmente ganharam muito com isso.
O Facto no Nuno Rafael ter sido um elemento dos Peste & Sida no passado e de vos acompanhar agora ao vivo revelou-se então essencial para este disco, correcto?
Almendra: Por ironia do destino o João partiu a perna num acidente e o Nuno Rafael veio de rompante numa sexta-feira 13 para tocar connosco em Coimbra e apanhar os temas... e ainda fez mais dois concertos, para fechar a digressão. Curiosamente, ele acabou por perceber ao vivo muitas das coisas que, provavelmente, enquanto público não perceberia – ele já tinha ido ver um ou dois concertos, mas estava de fora. Mas ali no palco, como músico, de repente a viver aquilo – e até a sentir a pressão, no fundo, de estar a substituir o João – e porque sabia as músicas novas, de repente fez-se luz na cabeça dele. Depois foi para casa, foi pensar o disco e, quando o resultado final nos chegou às mãos, disse-lhe mesmo “Epá, desculpa lá mas não há aqui nada de que discorde”. O que é, por um lado, arrepiante.
San Payo: Foi um trabalho de simbiose... [risos] Sobretudo porque o Nuno Rafael conhece bem o universo de Peste & Sida - esteve lá. No entanto, passado todo este tempo, aquilo que poderiam ser os Peste & Sida para o futuro era para ele uma interrogação e era algo que ele iria descobrir através deste material, que lhe dávamos para ouvir e que ia para estúdio. Foi isto tudo que aconteceu, ele acabou por ter mais elementos, porque veio tocar os temas... e isso acabou por dar-lhe outra visão daquele material. É engraçado, porque hoje em dia o Nuno Rafael está a acompanhar-nos – não a tocar baixo, porque felizmente agora já estou fixe – mas tem vindo a acompanhar-nos, sempre que está disponível, como guitarrista convidado. Isto porque decidimos que, apesar do João Alves estar a fazer um excelente trabalho, os Peste & Sida nos álbuns anteriores que gravaram tiveram sempre mais do que um guitarrista. E era ingrato para o João Alves conseguir conciliar com as duas mãos aquilo que foram os Peste & Sida desde 1987. Ele acabava por arranjar maneiras de fazê-lo; no entanto, alguns dos elementos que foram desenvolvidos – porque a maioria das músicas foram feitas com duas guitarras – acabaram por sofrer, inicialmente na cabeça dele e depois na execução, uma adaptação a uma guitarra só. Para nós seria muito complicado ir buscar outro guitarrista qualquer para fazer este “jogo” de guitarras que queríamos que acontecesse, por isso acabámos por contar com o Nuno Rafael, que trabalhou este álbum, que já foi guitarrista dos Peste & Sida, que conhece bem o nosso universo e que sabe bem precisamente aquilo que queremos passar como imagem e como mensagem em palco, quando tocamos ao vivo. Por isso, ele está a acompanhar-nos agora nos palcos.
Almendra: Realmente a química funcionava, a banda estava forte e tocando ao vivo em 2006 e ao longo de 2007, constato que ficámos muito mais fortes, muito mais consolidados e isso notava-se na certeza que tínhamos quando escrevíamos as músicas e mesmo nas que já as tínhamos feitas quando entrámos em estúdio – lembro-me que a «Bebe Vinho» já estava praticamente feita quando a tocámos em estúdio. Precisamente por isso, quando a tocamos ao vivo agora, parece que já a tocamos de olhos fechados. A banda ficou mais forte; parece que crescemos, as músicas quase que nos entraram já nas veias e é por isso que percebo quando o João diz que já está a pensar no próximo... porque este álbum já nos está nas veias, embora obviamente ainda não esteja nas do público. Em relação ao Rafa, enquanto produtor connosco na estrada, é uma mais-valia. Porque – lá está – não iriamos perder o tempo de arranjar um segundo guitarrista que não teria nada a ver connosco. É o Rafa, que é produtor e um músico convidado e que tem a preponderância e a capacidade, enquanto mentor musical, ou director musical - sei lá, neste momento é essa a posição que existe e que respeitamos – de ter uma visão exterior e, portanto, muito mais imparcial, que representa uma mais-valia para os Peste. Representa um empurrão, enquanto pessoa e enquanto músico, pela experiência que tem – descontextualizando aqui os projectos que ele tem e pensando apenas na pessoa e músico que é.
San Payo: A banda sobe ao palco em concerto; são os Peste & Sida como aí estão [apontando para o disco]. E não se sente a falta do Nuno Rafael – o concerto resulta, as músicas resultam... está ali, é Peste & Sida. Quando ele vem, o que acaba por acontecer é que ele traz um colorido que apenas existe no CD.
Almendra: Até por uma questão de estratégia e pelo modo como queremos apresentar o álbum – o disco tem um som cru, é um trabalho directo, que não é estritamente pessoal em termos de mensagem... é um pouco em alguns temas, mas trata-se de um álbum muito “de combate”... é uma mensagem na qual já tínhamos pensado há uns tempos. Porque é aquilo que estamos a viver neste momento.
Têm assistido de um modo privilegiado, até de cima dos palcos, ao novo “boom” da música punk em Portugal. Um pouco como “pais” do primeiro “boom”, aceitam responsabilidades por isso?
San Payo: Sempre tivemos uma atitude muito inteligente em relação a esses rótulos e, se notares, logo a partir do «Veneno» - mais marcadamente no «Portem-se Bem», mas mais a partir do «Veneno» - decidimos que, se bem que em termos de mensagem temos muito a ver com o punk-rock pelas premissas que escolhemos: a liberdade criativa, a mensagem de intervenção... tudo isso tem a ver com “boom” do punk-rock, ou do que lhe quiseres chamar. No entanto, inteligentemente, sempre gostámos mais de descrever Peste & Sida como uma banda rock pura e simplesmente. Porque a liberdade criativa permite-nos tocar reggae, ska, hardcore, ir buscar elementos de música tradicional... sempre o fizemos – já no «Veneno» e no «Portem-se Bem». Ou seja, foi logo no princípio que decidimos que não nos podíamos fechar dentro de um baú com um rótulo. Quando falas neste “boom” de punk-rock que está a haver, mais uma vez o que vejo – tirando as honrosas excepções de Bad Religion e alguns outros – é o revivalismo do punk em termos de estética sonora e gráfica... em termos de conteúdo, as coisas ficam muito aquém. Isso tem muito a ver com algo que nós – aí sim, como punks - queremos alertar. Tem a ver com a manipulação de hábitos de consumo que são desenvolvidos e em que normalmente se gastam milhões – sobretudo quem tem os grandes meios media nas mãos. Essas entidades hoje em dia exploram este revivalismo do punk, amanhã metem-no na gaveta e vão buscar outro movimento. Agora, voltando atrás, quando te digo que fomos inteligentes, acho que foi porque mantivemos a coerência e a mantivemos sobretudo como Peste & Sida e como punk-rockers e daí estarmos cá passados 21 anos. Talvez não tenhamos sido até agora os número um do top, mas toda a gente sabe quem são os Peste & Sida e as pessoas hão-de continuar a reconhecer a banda assim que ouvirem a nossa música.
Almendra: O que o João disse aplica-se a Peste & Sida e é a opinião dele. A minha opinião é que temos alguma responsabilidade, mas temos sobretudo mais responsabilidade é para connosco neste preciso momento. Se temos alguma responsabilidade, estamos muito gratos, temos algum orgulho e é fruto do nosso trabalho. Se influenciámos pessoas, esperamos que tenha sido sempre no sentido positivo – e ainda bem; é sinal que andámos a fazer alguma coisa. Valorizamos imensas bandas que andam aí: Simbiose, Revolta, Gazua... conheço “n” bandas que andam aí agora a fazer coisas interessantes e que olham para nós de certo modo como, por exemplo, nós olhávamos para os Xutos numa determinada altura e outras bandas têm também as suas influências. Agora, o revivalismo punk pode ser bom ou pode ser mau – esta cena da net é muito diferente hoje em dia, o contacto é completamente diferente. É bom, é mau... a música está acessível para toda a gente e os músicos não se podem queixar porque a promoção agora é de borla. As bandas têm que se organizar e arranjar outros meios – ou tocar ao vivo ou promoverem-se de outras formas. Mas quando falas de responsabilidade, isso é uma coisa que cabe a cada um. O punk é uma porta que se abre; e ou nunca passamos dessa porta que tem um letreiro a dizer “punk” e ficamos sempre a abri-la, nunca passando daí para a frente, estamos sempre a dar cabeçadas nessa porta – e eu falo por experiência própria – ou atravessa-se essa porta e encontramos 30 mil portas e então percebemos que o punk não é mais do que uma ponte. Podemos atravessar essa ponte de vez em quando, para não perdermos contacto com a outra margem... mas realmente há que avançar. Não podemos recusar as novas propostas que fazemos a nós próprios. Acho que os jovens hoje em dia têm que se preocupar com as temáticas que têm, com os problemas que têm e falar deles – e não se preocuparem tanto com o que estão fartos, com o que não resulta e não mandar abaixo tudo. Julgo que têm que apresentar-se soluções e propostas... mas isso é típico de cada geração e de cada momento. Nós - Peste & Sida – vivemos um momento, temos uma mentalidade, temos um background e uma cultura, temos uma certa maturidade – ou não – e há aspectos em que já não cedemos porque entretanto já vimos muita coisa e ninguém nos engana da mesma maneira. Preferimos passar as passas do Algarve. Preferimos fazer uma edição D.A.S. – Discos Anti-Sistema – do que aderir se calhar a uma editora, que colocasse o nosso disco nas prateleiras e que passados uns tempos faria com que não passássemos de um produto tipo espuma de barbear – gasta e deita fora. Parabéns a todas as bandas que estão aí fora a tentar vingar – força, continuem, não parem...
San Payo: Calma lá... se eu tiver um bom convite de uma qualquer multinacional, que valorize o meu trabalho e aquilo que quero e que não me iniba de ter, criativamente, o conteúdo que quero, estou disponível para trabalhar. Agora o problema é esse... este revivalismo vive da estética punk, mas em termos de conteúdo perde-se muito, salvo honrosas excepções, porque as há. É triste sobretudo quando vemos que hoje em dia existe uma maior cultura musical, há um maior ecletismo – não só a nível da procura, como a nível de quem cria... pá, tu vês malta a fazer de tudo e malta a ouvir de tudo. Há público para tudo, inclusivamente para as bandas que fazem a chamada “música do mundo”, que é um termo com o qual não concordo – enquanto não ouvir música de Vénus, de Marte ou da Lua, para mim toda a música é do mundo – a música continuará a ser a linguagem mais universal delas todas. O pop/rock, vivendo com uma percentagem de linguagem musical e com outra percentagem de conteúdo lírico, tem que conciliar a sua mensagem com estas duas formas criativas. Quando se fala de punk, do que é que se fala realmente? Fala-se da estética, que nasceu no final dos anos 70, fala-se do conteúdo... é precisamente por essas razões que nós, Peste & Sida, preferimos logo à partida considerar-nos uma banda pop/rock. Claro que muitos dos elementos que foram influências para nós foram os do punk, mas também foram outras coisas e mesmo hoje em dia estamos sempre a ouvir e a aprender. Tu que me conheces sabes bem disso.
Almendra: As pessoas dizem que gostamos de misturar música tradicional com punk... às vezes nem é bem isso. Olha, se agarrarmos no “Malhão Malhão” e acelerarmos aquilo, fica uma coisa que se chama punk, só porque demos a volta àquilo. O punk é apenas mais uma definição para as pessoas que têm a liberdade de conseguir dar a volta às coisas. Se acharmos que aquele caminho é mais fácil ou que, esteticamente, fica mais bonito... para quê fazer uma música com 20 notas, se com duas fica mais gira e o pessoal gosta mais? Não é sermos simplistas nem medíocres... é uma descoberta de nós próprios e uma viagem muito interior. Não é, por exemplo, chegar aqui e partir as cadeiras todas só porque me dá prazer partir as cadeiras. Quer dizer... o que é que ganho com isso?
San Payo: Ao fim de 21 anos tenho a certeza de que não me iria contentar, não iria ficar satisfeito em ficar por três acordes para criar musicalmente. Isso para mim até é fraudulento - e para qualquer pessoa que goste de criar e de música.
Almendra: O que acontece depois é que, reunidas todas estas condições musicais, preocupamo-nos também com a mensagem. Isto que está aqui [apontando para o CD] para mim é como se fosse um livro de poesia, é uma história que se conta do princípio ao fim – tem princípio, meio e fim e é como uma viagem: entras no nosso mundo e viajas connosco através deste disco. Mas é apenas uma parte... quem quiser a continuação, vai ter que esperar pelo próximo.
entrevista por:
Fernando Reis
site da banda:
www.pestenanet.com
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