Carlos Eduardo Ferreira, 53 anos, é o quinto de 13 irmãos nascidos em Santa Maria da Feira numa família de corticeiros. Filho de mãe brasileira, ficou Kalú assim que nasceu, graças aos tios. Pediu que a entrevista fosse feita no jardim em frente à sua casa, em Algés. Mais tarde explicaria o porquê de não nos deixar entrar: "O puto ainda está lá a dormir." O puto é Max, o mais novo dos três filhos do baterista, rebentos de 30, 26 e 16 anos, de quem fala com o orgulho pouco disfarçado de pai. Kalú, avô de um rapaz de nove anos e tio de "para aí 30 e tal sobrinhos", é provavelmente a pessoa mais simpática que alguma vez conhecerá. Fala sem manias e conta histórias (quase) sem censuras. Ficámos a saber que a 15 de Agosto nunca há concertos dos Xutos & Pontapés, data de aniversário da mãe de Kalú e dia de festa na família. É o vizinho que todos gostaríamos de ter, não só porque nunca nos negaria uma chávena de arroz, mas principalmente por ser capaz, segundo o próprio, de arranjar qualquer tomada, fechadura ou autoclismo. Kalú é o rei da bateria e do bricolage. "Sei fazer tudo", garante.
Tinha uns 16 anos e comprei-a ao João Pereira Coutinho (empresário), meu vizinho ali no Restelo. Um dia mostra-me a bateria que tinha comprado e que eu andava a namorar há imenso tempo. Custava para aí uns dez contos. Ele não tocava nada, era uma desgraça. Passadas três semanas disse-me que a queria vender por cinco contos. Fui pedir emprego ao meu vizinho da frente, que era dono do [Hospital] São Francisco Xavier, um gajo cheio de papel, superimpecável. E fui para lá embalar fruta. Depois ainda tive outro a descascar alhos, para fazer uma sementeira. Ele pagava quatro contos. No primeiro mês dei três contos ao João e fiquei com um conto, só naquela, para não ficar sem dinheiro, e ele deu-me a bateria. Só que dá-se o 25 de Abril e o homem pira--se para o Brasil! Passou um ano, dois, e ele nunca mais vinha. Um dia batem-me à porta... era o João. "Pá, os dois contos que me deves?" Não tinha. Ainda hoje ele diz: "Tocas bateria à minha conta? Ainda me estás a dever dois contos!"
Sempre quiseste fazer parte de uma banda rock?
Eu queria fazer música minha. Sempre toquei piano, é o meu instrumento-base de composição. Tinha montes de composições minhas e gramava tocá-las. Mas era um bocado impossível na altura, ninguém queria saber de um gajo português a tocar música própria. Então toquei com o meu irmão, fizemos uma banda de baile, tocávamos músicas tipo Steppenwolf, Led Zeppelin, para os amigos. Depois tivemos outra, já mais à séria. O meu irmão comprou um amplificador e inventou um esquema porreiro: um gira-discos com umas palhetas de carro que cada vez que andava à volta fazia contacto e as luzes mudavam e piscavam. O meu irmão era o maior! Com 18 anos já ganhava oito contos por fim-de--semana. Andava cheio de dinheiro.
E os teus pais, como é que viam essa carreira?
Não viam com bons olhos, mas como eu ainda estava mais ou menos a estudar e mantinha-me direitinho, nunca fui um gajo problemático, não se importavam. O meu pai ficava um bocado chateado porque na verdade queria que eu fosse trabalhar com ele. E acabei por ir, mais tarde.
A tua família tinha uma fábrica de cortiça, certo? Trabalhaste lá muito tempo?
O meu pai morreu em 1982 e eu depois fiquei mesmo à frente da fábrica. É o que eu sei fazer, ainda hoje tenho este lado muito administrativo, no Hard Club no Porto, aqui com os Xutos... a parte da gerência é uma coisa que gosto de fazer e não me custa muito, sempre fui habituado desde pequeno lá na fábrica. Quando o meu pai morreu encarei a cena do patronato mesmo a sério, tinha de andar de camisinha e gravata, sempre impecável. Fazia questão. Andava sempre com roupa na mala, caso me chamassem para tocar, e mudava na auto-estrada.
Nasceste no Porto. Como é que vens parar a Lisboa?
Nasci em Mozelos, Santa Maria da Feira, terra da cortiça. O meu avô tinha uma fábrica lá em cima e em 1971 o meu pai comprou uma no Montijo e dividia a gestão com os tios. Passava muitas semanas no Sul, até que resolveu mudar a família toda para cá. Tinha 14 anos e custou-me um bocado, mas tive a sorte de vir para um sítio porreiro, aqui no Restelo, e foi fantástico.
E não eram só betinhos?
Era! E eu também fiquei um bocado. Quando os Xutos começaram eu era aquela onda... era o betinho.
E como foi crescer numa família com mais 12 irmãos?
Foi altamente. É a confusão total. Claro que com muitos irmãos uma pessoa é capaz de ter menos coisas, mas viver todos juntos também foi uma alegria do caneco. Convivemos muito. Quando vivíamos no Porto, na Avenida da Boavista, éramos muito putos, não podíamos brincar na rua. Vivíamos numa daquelas casas enormes, com quatro andares, e era muito giro, brincávamos todos juntos. Tínhamos clubes e os célebres jogos de futebol em que juntávamos as raparigas também, que eram umas aselhas.
Quantos rapazes e quantas raparigas?
Sete rapazes e seis raparigas. Morreu uma das minhas irmãs, a Marta, mas eu conto sempre com ela na mesma. Quem desempatou foi uma lisboeta, a mais nova, que já nasceu aqui. É a Patrícia, que também mora aqui [Algés]. Foi ela que me convenceu a vir para aqui. Quem não tem dinheiro para morar no Restelo mora em Algés! Um gajo está mais ou menos no bairro, a malta é a mesma.
Ouvia-se música lá em casa?
Sempre houve música. A minha mãe tocava piano, era uma menina prendada, brasileira, fala francês e toca piano. Era daquelas meninas de boas famílias do Brasil, que andavam no colégio interno. Depois conheceu o cromo do meu pai e foi a desgraça! Mas na casa do Porto, que era enorme, tínhamos a sala do piano e o pessoal tinha umas aulinhas. A malta sentava-se toda no sofá para nos ouvir a tocar, tipo audições. Os meus tios andavam sempre em festa, música brasileira, com muito ritmo.
O meu irmão mais velho começou a ter umas bandas e os nossos amigos eram os gajos dos Táxi, que moravam lá ao pé de nós, e andávamos juntos na escola. O meu irmão tocava piano, o João Grande tocava bateria nas cadeiras e eu nunca participava, ficava sempre a olhar. Quando viemos para Lisboa é que o meu irmão montou mesmo umas bandas para tocar nos liceus. Ensaiavam lá em casa e eu estava sempre a ver. A bateria é aquela coisa que fascina qualquer miúdo. É uma maravilha, é só barulho, tudo a abanar. E resolvi meter-me naquilo.
E o teu irmão continuou nas lides musicais?
Não, é engenheiro agrónomo, seguiu outro caminho. Pá, a música no início resume-se um bocado ao sexo, às drogas e ao rock n'' roll. Um gajo toca para conhecer miúdas, é como o Facebook hoje. A música resume-se um bocado a isso. Depois há a malta que leva um bocado mais a sério e o meu irmão levava menos, passou aquela fase da vida e não quis mais saber disto.
E conheceste muitas miúdas?
Sabes que eu era um gajo muito dedicado à bateria e sempre fui um bocado tímido. Tinha sempre aquela mania que ia encontrar aquela pessoa. Sempre fui muito direitinho.
E foste assim até que idade?
Até aos 20 anos. Aliás, a minha primeira mulher foi das primeiras pessoas que namorei e casei-me logo. Casei-me com ela quatro meses depois de a ter conhecido, o meu pai dizia que eu era maluco. É a mãe do Fred e do Vasco. Estivemos juntos sete anos. Depois tive um interregno de uns anitos e agora estou com a Rita há 20 anos.
Como é que termina a banda com o teu irmão?
Comecei a insistir que tocássemos coisas nossas, mas aquilo correu muito mal. Uma foleirada que não era nada daquilo que eu queria. O meu irmão já andava aqui na Faculdade de Agronomia, o vocalista também estava a estudar... aliás, é hoje um ortopedista muito conhecido aqui na Parede, o Carlitos, e não estava a sair nada de jeito. Resolvi fazer um interregno. Já em 1978 fui fazer um inter rail, dei a volta à Europa, ouvia muita punkalhada, Sex Pistols e tal. Quando voltei havia um concerto dos Faíscas no Restelo dos Faíscas, a banda do Pedro Ayres Magalhães, e o Ramalho na bateria, que eu já conhecia dos bailaricos. Música a abrir, a partir cascalho, e eu pensei: "É mesmo isto que eu quero."
Foi o meu irmão mais velho que veio com uma revista "Música e Som", se não me engano, com um anúncio a pedir um baterista. Andei ali a mastigar e lá telefonei. Respondeu-me uma miúda do outro lado: "O Zé Pedro não pode atender agora." Passado uma hora ou duas voltei a ligar e ele não podia outra vez. A terceira vez ligo e a mesma conversa. "Vocês decidam-se lá que eu tenho mais que fazer que estar a aturar isto, há muitas bandas por aí", e desliguei-lhe o telefone na cara. Passados dez minutos liga- -me o Zé Pedro: "Altamente, foste o primeiro gajo a mandar vir ao telefone, deves ter mesmo o perfil que nós queremos." Fez de propósito. Estava lá ao lado a ouvir tudo, para fingir que estava muito ocupado.
E combinaram encontrar-se?
Combinámos na Cervejaria Trindade, que era onde ele costumava parar mais o Zé Leonel. Eu não conhecia aquilo muito bem, ia para a Baixa mas não era para estar assim nos copos. Na altura tinha uma T-shirt do Lou Reed, que não era muito vulgar na altura, que tinha mandado vir de Inglaterra e andava orgulhosamente com ela. Disse-lhe que quando visse um gajo com a tal T- shirt era eu. Lá fui eu na minha vespa para a Trindade. Cada vez que via um gajo assim mais esquisito ficava naquela. Eu muito envergonhado ao balcão... estive mais de uma hora à espera até que aparece o Zé Pedro. Já estavam sentados há duas horas, todos bezanas, porque se tinham esquecido do encontro. Cheguei à mesa já a mandar vir com eles, claro.
E ficaram juntos logo a partir daí?
Combinámos logo um primeiro ensaio. Aquilo era tudo muito estranho, tomavam montes de merdas e eu sempre naquela... o Zé Leonel com as orelhas todas pintadas por dentro, o Zé Pedro cheio de alfinetes, era tudo gente maluca. Nesse ensaio já estava o Tim, porque o Zé Leonel tinha ouvido dizer que havia um puto em Almada que tocava bem e ligou-lhe. O Gimba também lá estava, nos teclados, e tocámos umas musiquinhas que o Zé Pedro tinha feito. "Morte Lenta" foi a primeira que a malta tocou juntos. Pouco depois fui para a tropa.
Quanto tempo estiveste na tropa?
Um ano e meio, três meses aqui e o resto em Beja. Mas gramei à brava, foi muito importante para a minha vida. Não é aquela conversa de antigo combatente, que vim para tropa para aprender e tal, mas foi muito positivo. Percebi a diferença de estratos sociais e que havia muita gente a viver com dificuldades, coisas de que não me tinha apercebido na vida. Eu andava um bocado a curtir, o meu pai tinha uma fábrica... não tinha muita noção. E havia ali pessoal que depois da tropa nem sabia o que ia fazer da vida e aquilo bateu-me mesmo. Um gajo lá aprende a ser igual, vestimo-nos todos iguais, não há marcas, não há coisa nenhuma, se um erram pagam todos. É mesmo um por todos e todos por um. Aprende-se a ser solidário. O meu pai queria tirar-me da tropa e eu não deixei, fiz o tempo todo. O que é que eu vinha para aqui fazer? Na volta ficava todo entupido na droga, aquilo eram alturas muito más aqui fora, era só asneirar.
Tudo, passei tudo ao lado. Um gajo experimentou coisas, claro, mas por curiosidade. É preciso ter perfil para andar nessas coisas da drogaria. É preciso ter alguma coisa cá dentro que nos puxa para essas coisas e a mim nunca me puxou. Aliás, com os Xutos fumei o primeiro charro um ano depois de estar a tocar com eles. Estava sempre impecável, a marcar a distância, não quero cá confusões.
E quando voltaste da tropa, começaram a tocar?
Tocámos pela primeira vez nos Alunos de Apolo dia 13 de Janeiro, estava eu com uma semana de tropa. O Zé Pedro foi-me buscar ao quartel e era tudo a gozar: "Ó Ferreira, olha o teu amigo, é pessoal da passa!" E o Zé Pedro à porta, cheio de correntes e de alfinetes. Lá fomos na minha vespa, ele sem capacete. Eu tinha levado aquela injecção tramada que dão na tropa quando saímos a primeira vez, em que um gajo não fica doente durante dois anos. Mas aquilo é um grande power, aqui nas costas, normalmente fica-se com febre. A mim começou a prender-me o braço quase à hora do concerto, uma cena horrível. Só tocámos lá para as três da manhã. Eram os 25 anos do rock''n''roll e foi a passagem da pasta dos Faíscas para os Xutos & Pontapés, na área punk.
Quem é que se lembrou desse nome?
O Gimba, claro. O Zé Pedro queria Delírios Extremos, mas o pessoal não gostava muito. Depois foi Beijinhos & Parabéns, para aí durante um dia ou dois. Mas o Zé queria um nome com cinco letras como os Clash, porque cinco letras tinha mais impacto nos jornais e se tivesse um X ainda melhor, que é uma letra muito bonita. O Zé tinha esta cena jornalística. O Gimba disse Xutos & Pontapés e ficou.
Qual foi o primeiro concerto em que ganharam dinheiro?
Fui eu que arranjei, na feira de artesanato do Estoril. Davam-nos 50 contos para tocar dois dias. Na altura era uma guita do caneco. Sabíamos lá o que era aquilo... Turistas, famílias, pessoal do Estoril... nós tocávamos num palanque ao pé das pessoas a jantar. Eram só músicas a partir cascalho, "o cão polícia, cão, toma o meu escarro", tudo assim. Partimos o placo todo. O Zé Leonel dava sempre coças ao Zé Pedro em palco, era tudo teatro, tinha de ser sempre assim. Atirava o gajo ao chão, rasgava-lhe a camisa e o Zé nunca deixava de tocar! Cambalhotas, virado para o chão, pumba, sempre a tocar. Aquilo era de mais. Só tocámos uma noite, claro.
Quando finalmente começaram a fazer sucesso, subiu-vos à cabeça?
Subiu. Foi a altura má dos Xutos, com isso e mais uma data de factores. Foi em 86, 87, quando sai o "Circo de Feras" e rebenta com os "Contentores". A coisa começa a subir muito, fazemos o concerto no Restelo, esgotadíssimo...
E de repente eram os maiores. Em que é que isso se traduziu?
Muita gente à volta, nós a ganhar muito dinheiro e um gajo não saber muito bem o que é que andava para ali a fazer. Hoje em dia olho para trás e parecemos mesmo aqueles gajos das bandas que vemos nos filmes: mandam-nos para aqui e vamos; agora vamos todos para ali; agora deitem-se no chão. A malta fazia tudo o que nos mandavam. Criar uma imagem à nossa volta... e andávamos perdidos, bêbedos com o dinheiro.
Bebia, bebia, fogo... bastante mesmo. Bebíamos todos, mas eu e o Zé Pedro éramos os gajos que dávamos bem no álcool.
Chegaram a fazer concertos bêbedos?
Sim, sim. Eu aguentava-me melhor que o Zé, mas chegou a uma altura em que comecei a atinar. Na bateria, se um gajo não está atinado, é uma grande bronca. Uma cena má de uma guitarra passa mais despercebida que na bateria. Se tocar o ritmo todo ao contrário, ou qualquer coisa ao lado, pronto, acabou-se. Mas tive de atinar e não assim há tanto tempo como isso, com pena minha.
Quando foi isso?
Nos anos 90. Andávamos cheios de dinheiro, sucesso, e fomos para o Brasil gravar um disco. Achámos que tínhamos tudo, que qualquer coisa que fizéssemos as pessoas gostavam. E não foi. O disco não vendeu nada, o "Gritos Mudos", foi o flop total. O disco é engraçado mas mal-amado. Depois o nosso manager, o Nuno Rodrigues, fugiu-nos com o dinheiro. Tínhamos feito um contrato com a Sumol e a Philips e o gajo fugiu-nos com a guita toda. As Finanças caíram-nos em cima, a malta desmotivou para tocar e chegou ali uma altura... Tínhamos poucos concertos, ninguém nos queria e andávamos um bocado ao papel. Quando voltámos a gravar, em 1992, não nos víamos há seis meses. Depois disso decidi fazer uma reunião com eles para dinamizar a coisa. O João [Cabeleira] andava muito mal na altura, o Zé completamente perdido, o Tim estava a acabar o curso. Alugámos uma casa em Sintra, um casarão porreiro, e fomos para lá viver. Só Tim é que vinha dormir a casa.
E entenderam-se?
Discutimos, pusemos a conversa toda em dia, e era necessário. Jantámos juntos, apanhámos bezanas. Não havia pressão exterior nem coisas para fazer cá fora, éramos só nós. Cada um dormia junto às suas coisas, foi muito bom, mesmo. E daí saíram músicas muito boas, como a "Chuva Dissolvente", que ainda hoje é um sucesso.
Há ou houve rivalidade entre os Xutos?
Não, eu acho que não. Toda a gente tem um papel importante. O Zé Pedro sempre foi o front man nesta coisa da comunicação, já que é comunicativo por natureza. É ele que fala sempre, gosta de ir à televisão e dessas coisas. O Tim tem o seu papel, assumido por nós, de escrever letras e compor; eu estou na parte organizativa e também componho; o João dá a sua criatividade, que é boa, e já chega, e o Gui com as suas piadas e boa disposição. Aquele gajo é o maior do mundo. Sempre nos respeitámos muito. É uma família muito grande, confiamos muito uns nos outros.
O Tim tem uma quinta e gosta de cultivar coisas. Tu o que é fazes para além de tocar bateria?
Gosto muito de bricolage. Sei fazer tudo em casa. No outro dia ardeu-me um fio na parede, tirei a tomada, abri a caixa, saquei o fio, pus um novo com uma guia e arranjei tudo, espectacular. Sabes aquele programa americano do "make over", que dão casas às pessoas? Há sempre um gajo que fica com uma divisão para fazer. Quando me mudei para esta casa, há um ano, fiquei com a cozinha e fiz tudo. A bancada, pintei azulejos, uma recuperação de cozinha excelente. A minha mulher ficou toda contente. Sempre fui muito habilidoso e ajudava sempre o meu pai em casa a arranjar torneiras, fechaduras, resolvia tudo. E leio banda-desenhada. Sou fã da Marvel. Tenho estantes e estantes de revistas, colecciono desde puto. Sempre gostei muito. É uma chatice, aquilo acumula um pó... mas adoro os meus livrinhos, estão muito bem tratados. Ando sempre à procura de edições raras. Pronto, é um gosto que eu tenho.
A canção "Sem Eira nem Beira" gerou alguma polémica, por causa da frase "Senhor engenheiro". Fizeste questão de ser tu a cantá-la?
Eu tinha feito a música. Faço muitas músicas, letras é que não, não é mesmo o meu pelouro. O Tim tem um jeitaço para letras e fez aquilo em 20 minutos. Depois ele estava naquela que eu não tinha coragem para cantar aquilo. Isso é mesmo para eu ir cantar. E lá fui. E foi gira a reacção das pessoas, um gajo mesmo sem falar em nomes, foi bom. Tocou num ponto fraco das pessoas. E lá na Charneca [da Caparica, onde Kalú tem uma casa onde passa a maior parte do tempo], não estás bem a ver, eu era o maior. Todos contentes comigo, chamaram-me camarada, e o caraças. Muito fixe.
Ficaste contente quando José Sócrates saiu do governo?
Fiquei, mas sempre com aquela sensação que... o Passos Coelho, não sei até onde ele vai. Bom, esta é a minha opinião, e eu nem sou muito destas coisas, opino em casa e muito pouco. Mas se até aqui se têm travado guerras com armas, agora estamos numa terceira guerra mundial económica. A malta vai escravizar povos à pala do dinheiro. Estamos todos a ficar dependentes de meia dúzia de gajos que controlam o dinheiro. E estamos todos em apuros. Os alemães não precisaram de pegar em armas desta vez, os gajos estão a conquistar tudo calmamente. Estão a mandar nesta merda toda. A gaja, a Merkl, só lhe falta o bigode! Está lá a mandar na malta, e desta vez não há tiros, não há nada, mata à fome.
9 comentários:
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Kalú: "A bateria é uma maravilha, é só barulho e tudo a abanar"
Entrevista publicada no site do jornal i a 29 de Julho de 2011.
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Carlos Eduardo Ferreira, 53 anos, é o quinto de 13 irmãos nascidos em Santa Maria da Feira numa família de corticeiros. Filho de mãe brasileira, ficou Kalú assim que nasceu, graças aos tios. Pediu que a entrevista fosse feita no jardim em frente à sua casa, em Algés. Mais tarde explicaria o porquê de não nos deixar entrar: "O puto ainda está lá a dormir." O puto é Max, o mais novo dos três filhos do baterista, rebentos de 30, 26 e 16 anos, de quem fala com o orgulho pouco disfarçado de pai. Kalú, avô de um rapaz de nove anos e tio de "para aí 30 e tal sobrinhos", é provavelmente a pessoa mais simpática que alguma vez conhecerá. Fala sem manias e conta histórias (quase) sem censuras. Ficámos a saber que a 15 de Agosto nunca há concertos dos Xutos & Pontapés, data de aniversário da mãe de Kalú e dia de festa na família. É o vizinho que todos gostaríamos de ter, não só porque nunca nos negaria uma chávena de arroz, mas principalmente por ser capaz, segundo o próprio, de arranjar qualquer tomada, fechadura ou autoclismo. Kalú é o rei da bateria e do bricolage. "Sei fazer tudo", garante.
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Quando e como arranjaste a tua primeira bateria?
Tinha uns 16 anos e comprei-a ao João Pereira Coutinho (empresário), meu vizinho ali no Restelo. Um dia mostra-me a bateria que tinha comprado e que eu andava a namorar há imenso tempo. Custava para aí uns dez contos. Ele não tocava nada, era uma desgraça. Passadas três semanas disse-me que a queria vender por cinco contos. Fui pedir emprego ao meu vizinho da frente, que era dono do [Hospital] São Francisco Xavier, um gajo cheio de papel, superimpecável. E fui para lá embalar fruta. Depois ainda tive outro a descascar alhos, para fazer uma sementeira. Ele pagava quatro contos. No primeiro mês dei três contos ao João e fiquei com um conto, só naquela, para não ficar sem dinheiro, e ele deu-me a bateria. Só que dá-se o 25 de Abril e o homem pira--se para o Brasil! Passou um ano, dois, e ele nunca mais vinha. Um dia batem-me à porta... era o João. "Pá, os dois contos que me deves?" Não tinha. Ainda hoje ele diz: "Tocas bateria à minha conta? Ainda me estás a dever dois contos!"
Sempre quiseste fazer parte de uma banda rock?
Eu queria fazer música minha. Sempre toquei piano, é o meu instrumento-base de composição. Tinha montes de composições minhas e gramava tocá-las. Mas era um bocado impossível na altura, ninguém queria saber de um gajo português a tocar música própria. Então toquei com o meu irmão, fizemos uma banda de baile, tocávamos músicas tipo Steppenwolf, Led Zeppelin, para os amigos. Depois tivemos outra, já mais à séria. O meu irmão comprou um amplificador e inventou um esquema porreiro: um gira-discos com umas palhetas de carro que cada vez que andava à volta fazia contacto e as luzes mudavam e piscavam. O meu irmão era o maior! Com 18 anos já ganhava oito contos por fim-de--semana. Andava cheio de dinheiro.
E os teus pais, como é que viam essa carreira?
Não viam com bons olhos, mas como eu ainda estava mais ou menos a estudar e mantinha-me direitinho, nunca fui um gajo problemático, não se importavam. O meu pai ficava um bocado chateado porque na verdade queria que eu fosse trabalhar com ele. E acabei por ir, mais tarde.
A tua família tinha uma fábrica de cortiça, certo? Trabalhaste lá muito tempo?
O meu pai morreu em 1982 e eu depois fiquei mesmo à frente da fábrica. É o que eu sei fazer, ainda hoje tenho este lado muito administrativo, no Hard Club no Porto, aqui com os Xutos... a parte da gerência é uma coisa que gosto de fazer e não me custa muito, sempre fui habituado desde pequeno lá na fábrica. Quando o meu pai morreu encarei a cena do patronato mesmo a sério, tinha de andar de camisinha e gravata, sempre impecável. Fazia questão. Andava sempre com roupa na mala, caso me chamassem para tocar, e mudava na auto-estrada.
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Nasceste no Porto. Como é que vens parar a Lisboa?
Nasci em Mozelos, Santa Maria da Feira, terra da cortiça. O meu avô tinha uma fábrica lá em cima e em 1971 o meu pai comprou uma no Montijo e dividia a gestão com os tios. Passava muitas semanas no Sul, até que resolveu mudar a família toda para cá. Tinha 14 anos e custou-me um bocado, mas tive a sorte de vir para um sítio porreiro, aqui no Restelo, e foi fantástico.
E não eram só betinhos?
Era! E eu também fiquei um bocado. Quando os Xutos começaram eu era aquela onda... era o betinho.
E como foi crescer numa família com mais 12 irmãos?
Foi altamente. É a confusão total. Claro que com muitos irmãos uma pessoa é capaz de ter menos coisas, mas viver todos juntos também foi uma alegria do caneco. Convivemos muito. Quando vivíamos no Porto, na Avenida da Boavista, éramos muito putos, não podíamos brincar na rua. Vivíamos numa daquelas casas enormes, com quatro andares, e era muito giro, brincávamos todos juntos. Tínhamos clubes e os célebres jogos de futebol em que juntávamos as raparigas também, que eram umas aselhas.
Quantos rapazes e quantas raparigas?
Sete rapazes e seis raparigas. Morreu uma das minhas irmãs, a Marta, mas eu conto sempre com ela na mesma. Quem desempatou foi uma lisboeta, a mais nova, que já nasceu aqui. É a Patrícia, que também mora aqui [Algés]. Foi ela que me convenceu a vir para aqui. Quem não tem dinheiro para morar no Restelo mora em Algés! Um gajo está mais ou menos no bairro, a malta é a mesma.
Ouvia-se música lá em casa?
Sempre houve música. A minha mãe tocava piano, era uma menina prendada, brasileira, fala francês e toca piano. Era daquelas meninas de boas famílias do Brasil, que andavam no colégio interno. Depois conheceu o cromo do meu pai e foi a desgraça! Mas na casa do Porto, que era enorme, tínhamos a sala do piano e o pessoal tinha umas aulinhas. A malta sentava-se toda no sofá para nos ouvir a tocar, tipo audições. Os meus tios andavam sempre em festa, música brasileira, com muito ritmo.
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Quando te começas a interessar por bateria?
O meu irmão mais velho começou a ter umas bandas e os nossos amigos eram os gajos dos Táxi, que moravam lá ao pé de nós, e andávamos juntos na escola. O meu irmão tocava piano, o João Grande tocava bateria nas cadeiras e eu nunca participava, ficava sempre a olhar. Quando viemos para Lisboa é que o meu irmão montou mesmo umas bandas para tocar nos liceus. Ensaiavam lá em casa e eu estava sempre a ver. A bateria é aquela coisa que fascina qualquer miúdo. É uma maravilha, é só barulho, tudo a abanar. E resolvi meter-me naquilo.
E o teu irmão continuou nas lides musicais?
Não, é engenheiro agrónomo, seguiu outro caminho. Pá, a música no início resume-se um bocado ao sexo, às drogas e ao rock n'' roll. Um gajo toca para conhecer miúdas, é como o Facebook hoje. A música resume-se um bocado a isso. Depois há a malta que leva um bocado mais a sério e o meu irmão levava menos, passou aquela fase da vida e não quis mais saber disto.
E conheceste muitas miúdas?
Sabes que eu era um gajo muito dedicado à bateria e sempre fui um bocado tímido. Tinha sempre aquela mania que ia encontrar aquela pessoa. Sempre fui muito direitinho.
E foste assim até que idade?
Até aos 20 anos. Aliás, a minha primeira mulher foi das primeiras pessoas que namorei e casei-me logo. Casei-me com ela quatro meses depois de a ter conhecido, o meu pai dizia que eu era maluco. É a mãe do Fred e do Vasco. Estivemos juntos sete anos. Depois tive um interregno de uns anitos e agora estou com a Rita há 20 anos.
Como é que termina a banda com o teu irmão?
Comecei a insistir que tocássemos coisas nossas, mas aquilo correu muito mal. Uma foleirada que não era nada daquilo que eu queria. O meu irmão já andava aqui na Faculdade de Agronomia, o vocalista também estava a estudar... aliás, é hoje um ortopedista muito conhecido aqui na Parede, o Carlitos, e não estava a sair nada de jeito. Resolvi fazer um interregno. Já em 1978 fui fazer um inter rail, dei a volta à Europa, ouvia muita punkalhada, Sex Pistols e tal. Quando voltei havia um concerto dos Faíscas no Restelo dos Faíscas, a banda do Pedro Ayres Magalhães, e o Ramalho na bateria, que eu já conhecia dos bailaricos. Música a abrir, a partir cascalho, e eu pensei: "É mesmo isto que eu quero."
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Quando é que conheces o resto dos Xutos?
Foi o meu irmão mais velho que veio com uma revista "Música e Som", se não me engano, com um anúncio a pedir um baterista. Andei ali a mastigar e lá telefonei. Respondeu-me uma miúda do outro lado: "O Zé Pedro não pode atender agora." Passado uma hora ou duas voltei a ligar e ele não podia outra vez. A terceira vez ligo e a mesma conversa. "Vocês decidam-se lá que eu tenho mais que fazer que estar a aturar isto, há muitas bandas por aí", e desliguei-lhe o telefone na cara. Passados dez minutos liga- -me o Zé Pedro: "Altamente, foste o primeiro gajo a mandar vir ao telefone, deves ter mesmo o perfil que nós queremos." Fez de propósito. Estava lá ao lado a ouvir tudo, para fingir que estava muito ocupado.
E combinaram encontrar-se?
Combinámos na Cervejaria Trindade, que era onde ele costumava parar mais o Zé Leonel. Eu não conhecia aquilo muito bem, ia para a Baixa mas não era para estar assim nos copos. Na altura tinha uma T-shirt do Lou Reed, que não era muito vulgar na altura, que tinha mandado vir de Inglaterra e andava orgulhosamente com ela. Disse-lhe que quando visse um gajo com a tal T- shirt era eu. Lá fui eu na minha vespa para a Trindade. Cada vez que via um gajo assim mais esquisito ficava naquela. Eu muito envergonhado ao balcão... estive mais de uma hora à espera até que aparece o Zé Pedro. Já estavam sentados há duas horas, todos bezanas, porque se tinham esquecido do encontro. Cheguei à mesa já a mandar vir com eles, claro.
E ficaram juntos logo a partir daí?
Combinámos logo um primeiro ensaio. Aquilo era tudo muito estranho, tomavam montes de merdas e eu sempre naquela... o Zé Leonel com as orelhas todas pintadas por dentro, o Zé Pedro cheio de alfinetes, era tudo gente maluca. Nesse ensaio já estava o Tim, porque o Zé Leonel tinha ouvido dizer que havia um puto em Almada que tocava bem e ligou-lhe. O Gimba também lá estava, nos teclados, e tocámos umas musiquinhas que o Zé Pedro tinha feito. "Morte Lenta" foi a primeira que a malta tocou juntos. Pouco depois fui para a tropa.
Quanto tempo estiveste na tropa?
Um ano e meio, três meses aqui e o resto em Beja. Mas gramei à brava, foi muito importante para a minha vida. Não é aquela conversa de antigo combatente, que vim para tropa para aprender e tal, mas foi muito positivo. Percebi a diferença de estratos sociais e que havia muita gente a viver com dificuldades, coisas de que não me tinha apercebido na vida. Eu andava um bocado a curtir, o meu pai tinha uma fábrica... não tinha muita noção. E havia ali pessoal que depois da tropa nem sabia o que ia fazer da vida e aquilo bateu-me mesmo. Um gajo lá aprende a ser igual, vestimo-nos todos iguais, não há marcas, não há coisa nenhuma, se um erram pagam todos. É mesmo um por todos e todos por um. Aprende-se a ser solidário. O meu pai queria tirar-me da tropa e eu não deixei, fiz o tempo todo. O que é que eu vinha para aqui fazer? Na volta ficava todo entupido na droga, aquilo eram alturas muito más aqui fora, era só asneirar.
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E safaste-te dessa onda das drogas?
Tudo, passei tudo ao lado. Um gajo experimentou coisas, claro, mas por curiosidade. É preciso ter perfil para andar nessas coisas da drogaria. É preciso ter alguma coisa cá dentro que nos puxa para essas coisas e a mim nunca me puxou. Aliás, com os Xutos fumei o primeiro charro um ano depois de estar a tocar com eles. Estava sempre impecável, a marcar a distância, não quero cá confusões.
E quando voltaste da tropa, começaram a tocar?
Tocámos pela primeira vez nos Alunos de Apolo dia 13 de Janeiro, estava eu com uma semana de tropa. O Zé Pedro foi-me buscar ao quartel e era tudo a gozar: "Ó Ferreira, olha o teu amigo, é pessoal da passa!" E o Zé Pedro à porta, cheio de correntes e de alfinetes. Lá fomos na minha vespa, ele sem capacete. Eu tinha levado aquela injecção tramada que dão na tropa quando saímos a primeira vez, em que um gajo não fica doente durante dois anos. Mas aquilo é um grande power, aqui nas costas, normalmente fica-se com febre. A mim começou a prender-me o braço quase à hora do concerto, uma cena horrível. Só tocámos lá para as três da manhã. Eram os 25 anos do rock''n''roll e foi a passagem da pasta dos Faíscas para os Xutos & Pontapés, na área punk.
Quem é que se lembrou desse nome?
O Gimba, claro. O Zé Pedro queria Delírios Extremos, mas o pessoal não gostava muito. Depois foi Beijinhos & Parabéns, para aí durante um dia ou dois. Mas o Zé queria um nome com cinco letras como os Clash, porque cinco letras tinha mais impacto nos jornais e se tivesse um X ainda melhor, que é uma letra muito bonita. O Zé tinha esta cena jornalística. O Gimba disse Xutos & Pontapés e ficou.
Qual foi o primeiro concerto em que ganharam dinheiro?
Fui eu que arranjei, na feira de artesanato do Estoril. Davam-nos 50 contos para tocar dois dias. Na altura era uma guita do caneco. Sabíamos lá o que era aquilo... Turistas, famílias, pessoal do Estoril... nós tocávamos num palanque ao pé das pessoas a jantar. Eram só músicas a partir cascalho, "o cão polícia, cão, toma o meu escarro", tudo assim. Partimos o placo todo. O Zé Leonel dava sempre coças ao Zé Pedro em palco, era tudo teatro, tinha de ser sempre assim. Atirava o gajo ao chão, rasgava-lhe a camisa e o Zé nunca deixava de tocar! Cambalhotas, virado para o chão, pumba, sempre a tocar. Aquilo era de mais. Só tocámos uma noite, claro.
Quando finalmente começaram a fazer sucesso, subiu-vos à cabeça?
Subiu. Foi a altura má dos Xutos, com isso e mais uma data de factores. Foi em 86, 87, quando sai o "Circo de Feras" e rebenta com os "Contentores". A coisa começa a subir muito, fazemos o concerto no Restelo, esgotadíssimo...
E de repente eram os maiores. Em que é que isso se traduziu?
Muita gente à volta, nós a ganhar muito dinheiro e um gajo não saber muito bem o que é que andava para ali a fazer. Hoje em dia olho para trás e parecemos mesmo aqueles gajos das bandas que vemos nos filmes: mandam-nos para aqui e vamos; agora vamos todos para ali; agora deitem-se no chão. A malta fazia tudo o que nos mandavam. Criar uma imagem à nossa volta... e andávamos perdidos, bêbedos com o dinheiro.
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Bebias muito nessa altura?
Bebia, bebia, fogo... bastante mesmo. Bebíamos todos, mas eu e o Zé Pedro éramos os gajos que dávamos bem no álcool.
Chegaram a fazer concertos bêbedos?
Sim, sim. Eu aguentava-me melhor que o Zé, mas chegou a uma altura em que comecei a atinar. Na bateria, se um gajo não está atinado, é uma grande bronca. Uma cena má de uma guitarra passa mais despercebida que na bateria. Se tocar o ritmo todo ao contrário, ou qualquer coisa ao lado, pronto, acabou-se. Mas tive de atinar e não assim há tanto tempo como isso, com pena minha.
Quando foi isso?
Nos anos 90. Andávamos cheios de dinheiro, sucesso, e fomos para o Brasil gravar um disco. Achámos que tínhamos tudo, que qualquer coisa que fizéssemos as pessoas gostavam. E não foi. O disco não vendeu nada, o "Gritos Mudos", foi o flop total. O disco é engraçado mas mal-amado. Depois o nosso manager, o Nuno Rodrigues, fugiu-nos com o dinheiro. Tínhamos feito um contrato com a Sumol e a Philips e o gajo fugiu-nos com a guita toda. As Finanças caíram-nos em cima, a malta desmotivou para tocar e chegou ali uma altura... Tínhamos poucos concertos, ninguém nos queria e andávamos um bocado ao papel. Quando voltámos a gravar, em 1992, não nos víamos há seis meses. Depois disso decidi fazer uma reunião com eles para dinamizar a coisa. O João [Cabeleira] andava muito mal na altura, o Zé completamente perdido, o Tim estava a acabar o curso. Alugámos uma casa em Sintra, um casarão porreiro, e fomos para lá viver. Só Tim é que vinha dormir a casa.
E entenderam-se?
Discutimos, pusemos a conversa toda em dia, e era necessário. Jantámos juntos, apanhámos bezanas. Não havia pressão exterior nem coisas para fazer cá fora, éramos só nós. Cada um dormia junto às suas coisas, foi muito bom, mesmo. E daí saíram músicas muito boas, como a "Chuva Dissolvente", que ainda hoje é um sucesso.
Há ou houve rivalidade entre os Xutos?
Não, eu acho que não. Toda a gente tem um papel importante. O Zé Pedro sempre foi o front man nesta coisa da comunicação, já que é comunicativo por natureza. É ele que fala sempre, gosta de ir à televisão e dessas coisas. O Tim tem o seu papel, assumido por nós, de escrever letras e compor; eu estou na parte organizativa e também componho; o João dá a sua criatividade, que é boa, e já chega, e o Gui com as suas piadas e boa disposição. Aquele gajo é o maior do mundo. Sempre nos respeitámos muito. É uma família muito grande, confiamos muito uns nos outros.
O Tim tem uma quinta e gosta de cultivar coisas. Tu o que é fazes para além de tocar bateria?
Gosto muito de bricolage. Sei fazer tudo em casa. No outro dia ardeu-me um fio na parede, tirei a tomada, abri a caixa, saquei o fio, pus um novo com uma guia e arranjei tudo, espectacular. Sabes aquele programa americano do "make over", que dão casas às pessoas? Há sempre um gajo que fica com uma divisão para fazer. Quando me mudei para esta casa, há um ano, fiquei com a cozinha e fiz tudo. A bancada, pintei azulejos, uma recuperação de cozinha excelente. A minha mulher ficou toda contente. Sempre fui muito habilidoso e ajudava sempre o meu pai em casa a arranjar torneiras, fechaduras, resolvia tudo. E leio banda-desenhada. Sou fã da Marvel. Tenho estantes e estantes de revistas, colecciono desde puto. Sempre gostei muito. É uma chatice, aquilo acumula um pó... mas adoro os meus livrinhos, estão muito bem tratados. Ando sempre à procura de edições raras. Pronto, é um gosto que eu tenho.
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A canção "Sem Eira nem Beira" gerou alguma polémica, por causa da frase "Senhor engenheiro". Fizeste questão de ser tu a cantá-la?
Eu tinha feito a música. Faço muitas músicas, letras é que não, não é mesmo o meu pelouro. O Tim tem um jeitaço para letras e fez aquilo em 20 minutos. Depois ele estava naquela que eu não tinha coragem para cantar aquilo. Isso é mesmo para eu ir cantar. E lá fui. E foi gira a reacção das pessoas, um gajo mesmo sem falar em nomes, foi bom. Tocou num ponto fraco das pessoas. E lá na Charneca [da Caparica, onde Kalú tem uma casa onde passa a maior parte do tempo], não estás bem a ver, eu era o maior. Todos contentes comigo, chamaram-me camarada, e o caraças. Muito fixe.
Ficaste contente quando José Sócrates saiu do governo?
Fiquei, mas sempre com aquela sensação que... o Passos Coelho, não sei até onde ele vai. Bom, esta é a minha opinião, e eu nem sou muito destas coisas, opino em casa e muito pouco. Mas se até aqui se têm travado guerras com armas, agora estamos numa terceira guerra mundial económica. A malta vai escravizar povos à pala do dinheiro. Estamos todos a ficar dependentes de meia dúzia de gajos que controlam o dinheiro. E estamos todos em apuros. Os alemães não precisaram de pegar em armas desta vez, os gajos estão a conquistar tudo calmamente. Estão a mandar nesta merda toda. A gaja, a Merkl, só lhe falta o bigode! Está lá a mandar na malta, e desta vez não há tiros, não há nada, mata à fome.
Retirado de...
http://www.ionline.pt/conteudo/140056-kalu-a-bateria-e-uma-maravilha-e-so-barulho-e-tudo-abanar
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